quinta-feira, 25 de novembro de 2010

22 de Outubro de 1862


22 de Outubro de 1862
Nem tudo é como deveria ser, nem sempre a vida nos é justa, mas temos que aprender com ela. Não fui exceção.
Na época, passava um pouco de meus nove anos. Naquele dia fazia sol, eu chegava em casa da escola. Passei pelo hall e pela sala de estar, silêncio... Estranhei, mas continuei. A cozinha, o quintal... nada.
Subi as escadas e ouvi sussurros vindos do quarto de meus pais.
Entrei.
No quarto, minha mãe e meu pai. Ele com sua farda e seu quepe, cobrindo-lhe a metade superior do rosto do ângulo que sua cabeça estava; Ela com seu vestido de renda longo azul claro, o rosto coberto de lágrimas.
- O que aconteceu? Perguntei assustado como... Bem, como uma criança.
Recebi não mais do que frases soltas como resposta. Algo sobre D. Pedro, algo sobre o Paraguai, algo sobre uma guerra.
- Mas você precisa mesmo ir?
A pergunta era idiota. Colocou-me em seu colo, aquele colo enorme que sempre parecia ficar menor com o tempo, olhou-me, seus olhos castanhos mirando os meus com sua firmeza inabalável. Eu sabia o que ele iria responder, e ele também sabia. Por isso, e vez de responder, fez algo mais. Abraçou-me. Abraçou-me como jamais abraçara. Ali senti algo, senti dor. Não por sua partida, mas pela incerteza de sua chegada. Pude sentir tudo que meu pai já havia feito por mim naquele abraço, suas conquistas e seus fracassos, suas alegrias e suas tristezas, lembrei-me de cada sorriso, de cada tarde de domingo que passei com ele.
Quando por fim seus braços se afrouxaram não disse mais nada, pegou sua mala e partiu, sem olhar para trás. O momento em que a farda desapareceu pelo beiral da porta foi o momento em que de meu olho se desprendeu uma lágrima morta.
Os seis meses que se seguiram foram os mais difíceis de minha vida. Não tive coragem de perguntar a minha mãe se ela achava que meu pai voltaria, não queria ouvir mentiras, mesmo que estas trouxessem uma faísca de esperança a mim. Pelo contrário, gostava de encarar a verdade, o que não me impedia de fazer visitas freqüentes ao quarto da minha mãe e ficar esperando que aquela farda e aquele quepe aparecessem novamente à porta. O que não me impedia de esperar que meu pai surgisse e me tomasse em seu colo novamente.
Certa vez estava lá, esperando pelo quepe e pela farda, quando um quepe e uma farda realmente surgiram por entre a porta, mas o quepe e a farda errados, aqueles eram menores e mais vazios. Vinha falando de uma batalha no rio da Prata, de um acidente, de um navio afundado, se meu pai retalhado.
Morto? Não. Pelo menos ainda não.
Outras duas semanas sucederam aquela visita. Não sei dizer se foram melhores ou piores do que os meses que os precederam, mas assim como estes, aqueles passaram.
Estava em minha cama quando minha mãe me chamou à sala. Desci. Vi a farda. Vi o quepe. Vi meu pai. Vi que lhe faltavam as pernas e metade da mão direita.
Corri até ele.

Um abraço
Um choro
Um reencontro.
Um Pai
Um Filho
Duas lágrimas em comunhão.

Rio de Janeiro, 22 de outubro de 1862.

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