segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Uma Hora da Manhã


Uma Hora da Manhã
Vou contar uma história, talvez “A” história, talvez só “outra” história, não sei.
Lhes conto essa história já tarde na madrugada  de um dia chuvoso, não creio que exista clima melhor para contá-la. Como toda história, essa começa com um nome, Roberto, um homem de bem, um homem calmo e sereno. Ou pelo menos era assim... Aproveitem-na, vou estar bem aqui quando acabarem para conversarmos mais. Por hora fico aqui ouvindo a chuva batendo na janela lá fora.

***

Ele está lá. Sim, sei que está, só esperando que eu vá lá apagar a luz para me pegar. Ah o fim, que bela maneira de partir... E pensar que alguns dias atrás estava feliz e confortável em minha sala de visitas/sala de TV, só aproveitando um bom filme do começo dos anos 90.
O que... Um miado? Mas como? Bóris se jogou da janela uns dias atrás, ele... Será que ele quer me enlouquecer com isso? Talvez. Talvez esteja conseguindo.
No começo eram as luzes, entende? Elas acendiam sozinhas quando eu não estava olhando... Achei que quem as estava acendendo era eu mesmo e qye só esquecia... Sempre fui esquecido...
Então... Então o escorredor começou a mudar de lado da pia, algo idiota, mas como eu poderia ter feito aquilo se sempre o deixava de um lado? E continuava acontecendo, de novo e de novo. Comecei a me assustar, achei que o lugar estava assombrado, que eu podia lutar contra o que está naquele corredor. O que está naquele corredor? O que está naquele corredor? O que... Água benta e crucifixos, achei que estaria protegido com água enta e crucifixos. Vi em um documentário no discovery channel uma vez que coisas assim funcionavam e conseguiam ao menos enfraquecer as assombrações, achei que valia a pena tentar. Lavei tudo com água benta, chão, paredes, teto. Preguei um crucifixo. Outro. Quando fui pregar o terceiro... Nada. Não conseguia atravessar. O prego não entrava além do reboque da parede, era como se eu estivesse martelando aço no aço, algo absurdo... A furadeira devia dar conta do serviço. Deu. Com uma leve pressão no gatilho a broca girou, entrando fundo na parede. Então a parede sangrou. Em vez de poeira branca e avermelhada, um líquido espesso saiu do buraco, algo vermelho cheirando levemente a ferro. Não jorrava, escorria lentamente, lentamente manchando a tinta da parede.
Não consegui tirar aquela mancha por nada nesse mundo.
O síndico disse que eu tinha furado um cano que não devia estar lá, que devi estar na parede oposta. Insistiu em dizer como aquele cano era velho como estava enferrujado e como o trocariam em agosto. Posso acreditar que acertei um cano e posso acreditar que estava enferrujado, mas não posso acreditar nessa história.
Não jorrava, escorria.
Moro no sexto andar de um prédio com 14 andares, se eu tivesse simplesmente acertado um cano, teria manchas até no teto por causa da pressão monstruosa que estaria acumulada na água, entretanto... Não jorrava... Escorria...
O encanador viria consertar na quarta feira. As luzes acendiam sozinhas. O escorredor mudava de lugar. A parede sangrava. Eu entrava em desespero.
Desde que o trouxe para o apartamento, Bóris ficava encarando a parede que sangrava dua horas por dia, todo dia. Nunca entendi porque ele fazia aquilo, mas achei que ele tmbém não entendia por que eu passava quatro horas por dia encarando uma caixa de luzes colorida. Naquele dia Bóris viu algo(ou sentiu algo) e teve uma súbita vontade de virar pavê. Ou pelo menos foi isso que entendi. Bóris virou pavê. Eu começei a chorar.
Tanta coisa acontecia, mas só acontecia à noite, só... Só de noite. Ouço algo no corredor, só rezo para que essa noite acabe, não quero ficar aqui, durmo em um banco na praça, não importa, não quero ficar aqui. Não quero...
O encanador consertou o cano na sexta feira e eu não consegui mais dormir. Nunca dormi muito, mas depois daquele dia não consegui dormir nem dez minutos, sempre* que começo a adormecer acordo com um pulo, como se despertasse de um pesadelo do qual não pudesse me lembrar.
Comecei a ver vultos, vultos por toda parte, toda vez que desvio o olhar para alguma coisa muito rápido vejo algo... Algo se escondendo... Algo... Minha respiração... Não consigo controlar... Não consigo... Aquela luz, tenho que apagar aquela luz, tenho que apagar... Mas ele está lá, ele quer que eu apague a luz, ele... Que foi isso? Tem alguém aqui? Tem alguém... Tenho que apagar aquela luz, eu... Eu... Vou apagar aquela luz.

***

Sozinho e sujo com a própria urina, Roberto foi encontrado em seu apartamento. Hoje ele já não mora mais no sexto andar daquele prédio, hoje ele mora em uma bela salinha cúbica branca estofada em uma casa térrea, sempre veste seu belo macacão branco de gala com as mangas amarradas atrás das costas. Médicos e psiquiatras dizem que ele entrou em um estado onde sua mente recria os mesmos episódios de novo e de novo e de novo. Pobre Roberto, preso para sempre em seu pesadelo.
Alguns dizem que Roberto apresentava sinais de esquizofrenia já antes do ocorrido, afirmam que foi tudo obra de sua mente senil. Outros apelam para o sobrenatural, dizem que o apartamento tem um histórico desde seu primeiro dono, que Roberto apenas escolheu morar no lugar errado, grande erro.
Não sei dizer quem está certo e quem está errado, comprei esse apartamento já faz alguns meses e não vi nada de tão assustador assim. Mentira, já tomei vários sustos com meu guarda roupas; Ele é de madeira envernizada e bem polida a um ponto em que fica parecendo um espelho marrom embaçado e dependendo do jeito que olho pra ele parece que tem alguém mais no quarto. Que coisa, tenho mais medo do meu guarda roupas do que desse apartamento.
Bom, acho que é só isso, espero que tenham gostado da história. Voltem quando quiserem. Agora vou dormir, só vou apagar aquela luz do corredor.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Não Pergunte Por Quem Os Sinos Dobram


Capítulo II – À França, com amor:
Quando passo o passo, morro e repasso: Fatio o linho e corro pro abraço.
O que... Ah aquele filho da... Andou usando minha máquina de escrever de novo? Desgraça... E justo atrás das folhas que eu já escrevi? Ok, já chega, definitivamente preciso de um computador. Ou de um cadeado.
***
Que tédio... Quer saber de uma coisa sobre o limbo? Não tem nada pra fazer aqui! Quer dizer... Literalmente é um espaço em branco vazio com camas e essa máquina de escrever em baixo da cama da Morte. Ela quer que eu faça o quê? Casinha de vento? Vou é escrever, poxa. Ela deve estar coletando as almas penadas dela ou falando com Deus ou com o psicólogo dela então acho que tenho algum tempo.
Sobre o que devo escrever...? Hm, tá aí algo a se pensar, quer dizer... Se alguém do outro mundo fosse ler isso, que mensagem eu gostaria de passar? Não creio que minhas histórias sobre minha vida sejam importantes, afinal, eu morri! Queria escrever sobre o pós-vida, sobre como tudo é diferente e coisas do gênero, exceto que, como já disse, não tem muito pra se escrever aqui, aquele parágrafo ali em cima já disse tudo. Então... O que? Bom, a Morte tava escrevendo sobre como eu entrei nessa... Que tal se eu contasse como outra pessoa entrou? É, acho que isso vai dar certo. Beleza, então aqui vai a história de Arthur.
Seguinte, a Morte não nos deixa sair muito, sabe? Ela diz que devemos nos acostumar com o limbo, que lá é onde vamos preencher toda a burocracia e blá blá blá, mas nesse dia em especial ela decidiu me levar com ela. Era a primeira vez que eu saía desde que tinha batido as botas, e tipo, eu tava na maior onda porque né, Paris, oi.
- Você devia ter visto isso aqui no século XIX, aquilo sim era uma cidade repeitável. – Diz Morte.
Então temos esse cara que temos que recolher, certo? O nome é (ou era, sei lá) Arthur de Leon, Leon é... Vou usar o presente pra falar dele, vou considerar que se eu vejo, falo e toco nele ele ainda existe. Enfim, Leon tinha (Sei que disse que ia usar o presente mas...) 64 anos quando tudo isso aconteceu. Tem cabelos brancos, pele enrrugada e sempre usa esse suéter verde xadrez que ele diz dar sorte. Nativo de Paris, poderia se dizer que Arthur é tudo, menos um parisiense. Em 64 anos de sua existência, Arthur nunca foi ao topo do “Lixo metálico empilhado”, que é como chamava a Torre Eiffel, sequer pasou perto do “Culto ao ócio e da xaropice”, vulgo Louvre, não gosta de croissants e acredita firmemente que o Arco do Triunfo já foi um dia algo usado para sustentar uma enorme edificação romana do tamanho do Coliseu, o que parece ser uma explicação mais plausível em sua cabeça do que acreditar que alguém construiu um enorme arco no meio do nada só para atestar seu triunfo sob as forças do mal. Pois é, cada um com suas loucuras.
Bom, então estavam no topo de um dos maiores prédios da cidade Arthur e mais dois executivos da Paris Office Rooms for Real Accionists, ou P.O.R.R.A., como eles gostam de chamar, conversavam sobre a possibilidade de implantar um novo aluguel sobre os interruptores dos escritórios, chamariam de uma pequena medida para aumentar a renda durante a recessão, o que era uma mentira uma vez que os dois milhões trezentos e trinta e dois mil quatrocentos e vinte e sete euros que a companhia havia perdido foram repostos com setenta e dois milhões quinhentos e cinquenta e três mil e nove euros vindos de investimentos na China.
- Não dá, não dá, não podemos cobrar isso! É óbvio que podemos cobrar no mínimo o dobro disso! – Dizia um à esquerda de Arthur.
- Tá maluco? O negócio é começar cobrando esse valor e aos poucos ir aumentando, se começarmos cobrando tanto eles vão acabar nos processando! – Rebatia o outro, à direita dos outros dois homens.
- Maluco é você, retardado!
- Que foi? Ofendi? Fala aí!
- Eu tô cheio disso! Vou te estourar a cara!
- Cai dentro seu...
Na mente de Arthur, a briga terminava aí, desse ponto em diante os homens à sua frente não passavam de duas figuras fazendo gestos e gemendo umas para as outras. Os executivos se chamavam... Se chamava... Interessante, não sabia o nome deles, sabia que eram irmãos, e que chamava de B1 o da esquerda e de B2 o da direita. Por algum motivo agora ele imaginava ambos vestidos de ratos, “Lester 1 e Lester 2”, pensou. De repente o escritório do alto da torre coberto de vidro e móveis caros se transformou em um laboratório, e de repente ele tinha um longo cabelo espetado e preto, oh meu Deus, preto! Em seu delírio, Lester 2 ou B2 ou Francis, mesmo que ele não lembrasse desse último nome, o chamava, resgatando-o de volta à vida real.
- Que você acha, Arthur?
- Eu... Eu acho que vai depender do resultado do jogo de hoje e... Eu... Caramba, que dor de cabeça, rapaz! – Disse meio que fingindo no começo, mas depois percebendo que a dor de cabeça realmente estava ali.
- Quer uma aspirina? – Perguntava B1 enquanto puxava uma gorda cadeira estofada vermelha.
- Não... Só preciso dar uma volta... É, uma volta... Vocês continuem o trabalho, sim...?
- Sim, senhor! – Responderam num tom uníssono que faria Arthur cair na gargalhada no mesmo instante se aquele fosse um dia normal, mas aquele não era um dia normal, Arthur estava doente, fato que só ocorrera cerca de vinte anos atrás num incidente que envolvera uma galinha e um cozinheiro com malária que se sentira ofendido pela forma como Arthur entrara em seu restaurante.
Arthur saiu pela avenida cambaleando, desesperado por ar, por um lugar onde pudesse esfriar a cabeça, qualquer lugar. Esbarrou em uma ou outra pessoa no caminho, balbuciando alguma coisa como pedido de desculpa. Entrou no primeiro parque que viu, adentrando no Jardin Des Plantes, um parque gigantesco perto do centro de Paris.
Cinco minutos foram necessários para que a dor passasse, nada mais, nada menos. Arthur levantou-se, finalmente contemplando o parque. Por trinta segundos pôde observar a grande beleza do local, a última vez que estivera em um parque fora dez anos e uma mijada atrás. De repente Arthur sentiu vontade de fazer algo novo. A idéia mais perigosa que já surgiria em sua mente lhe veio à cabeça: iria sair da rotina.
Parou um entregador de jornal e perguntou em puro e perfeito francês qual era o ponto turístico mais próximo dali. O entregador, um romeno que estava na cidade em busca de uma vida melhor, lhe disse em um francês travado e gago que o Louvre era uma boa opção. Trocaram um aceno e após o entregador elogiar o francês de Arthur, “exepcional para um estrangeiro”, tornou a realizar suas atividades padrão.
***
Nota mental: Acorrentar a máquina de escrever ao sair do limbo.
Espera... O moleque estava me ajudando? Ele... Ele resolveu contar a história por mim? Interessante... Talvez sejam esses remédios que Deu... Quer dizer... Meu psicólogo me mandou tomar, mas acho que isso pode não ser má idéia... Uma bela história daqueles do além sobre aqueles na Terra... É, isso pode render alguns centavos para o cara que achar isso... Ou ele pode postar em um fórum da internet, quem sabe?
Bem... De onde paramos...? Certo.
Arthur passava deslumbrado pelas ruas de Paris, interessante como algumas pessoas sempre passam pelos mesmos lugares e quase nunca realmente olham por onde passam, como só olham para onde querem chegar...
Passou por um outdoor gigantesco que anunciava um grande jogo de futebol que ocorreria no dia seguinte e seria coberto pela emissora esportiva mais conhecida no mundo. A verdade era que o grande jogo não valia nada, mas todos queriam acreditar que valia, assim, ele adiquiria valor.
Outras coisas que não valem nada mas que todos teimam acreditar que valem são ouro, papel com figuras específicas escritas nele, papel antigo com figuras específicas escritas nele, cor de pele, mamonas e cadeados.
Na ocasião, tomei a forma de uma bela mulher, loira com peitos grandes e roupa colada na pele, decidi correr pelo parque onde Arthur estava sofrendo da última doença que teria em sua vida. Rafael tinha ido fazer carinh0o em um gato moribundo. Viria pegar ambos logo depois daquilo.
Arthur dobrou a esquina, ansioso pelo que viria a ver, ansioso pelo que poderia sentir, quem sabe... Quem sabe...
Eu sei.
A duas casas do museu uma pedra do tamanho de uma tangerina atingiu a nuca de Arthur, uma horda furiosa se aproximou dele com paus e canos, batendo e chingando, batendo e chingando, chutes, socos, todo tipo de agressão. Arthur pensou que aqueles fossem seus clientes, que estivessem revoltados com sua política de aumento de preços, que tivessem resolvido dar um fim naqueles abusos, quem sabe?
Eu sei.
Aqueles não eram clientes de Arthur. Bom, um deles era, mas sequer reconheceu o infeliz. Eram piores que clientes, eram torcedores. Arthur de Leon à primeira vista podia ser chamado de qualquer coisa, menos de parisiense. Arthur de Leon não morreu por causa de trabalhadores clamando por justiça, morreu por não parecer ser de onde veio.
Morreu na contramão atrapalhando o trânsito.
Naquele mesmo dia um gato chamado Lusco morreu. Curiosamente o enterro do gato teve mais espectadores do que o do próprio Arthur.
A França ganhou o jogo.
Um imposto absurdo foi imposto a um número gigantesco de gente.
Três pessoas morreram em brigas.
Mas a França ganhou o jogo.
E a alegria do povo francês contagiou o mundo.
E o amor do povo francês contagiou o mundo.