domingo, 16 de outubro de 2011

Música em Primeira Ordem


Música em Primeira Ordem

---------- Transmissão de Audiolivro Iniciada ----------

Muito pode ser dito quando pouco se conhece sobre algo. Os eventos a seguir ocorreram na semana entre 09 e 15 de fevereiro de 2014, quando se comemorava o segundo aniversário do nascimento dos Estados Gerais da América, nação essa que hoje celebra vinte anos e reúne o que costumavam serem 34 nações independentes e fracas.
Naquela época ainda estavam em curso as negociações para que a Bolívia entrasse na união, fato que hoje sabemos que nunca acontecerá... Pelo menos enquanto Chávez continuar ganhando as eleições.
09 de Fevereiro de 2014:
Aqui encontramos Bastos. Sua história é hoje conhecida, ainda assim pouco ela tem a dizer sobre o ocorrido. Filho de classe média baixa tinha uma vida razoavelmente boa. Cabelo castanho claro e olhos verdes.
Diziam que era bonito.
Não sabia falar com garotas.
Gostava de música.
Enquanto todos corriam atrás dos melhores e últimos aparelhos e fones para ouvir música, Bastos se contentava com um simples reprodutor portátil de 2012 e um par de fones arcaicos que seu avô dizia ter pertencido a um aparelho chamado Walkman.
Abrimos aqui um parêntesis a você, leitor de 2032.
Walkman: Aparelho primitivo de reprodução de Fitas Cassetes.
Abrimos aqui outro parêntesis a você, leitor de 2032.
Fita Cassete: Um dos primeiros meios de gravação de som criados, sucessor dos Discos de Vinil, ainda hoje aclamados por certos meios sociais. Por mais absurdo que pareça, conseguia gravar apenas uma média de 60 minutos se utilizado em seu total potencial.
Como era de se esperar, aparelhos tão velhos assim não foram feitos para se tornarem tão velhos assim. Dessa forma, a maravilha de todas as maravilhas, o novo celular do momento de 2012 terminou seus dias explodindo enquanto tocava a nova música da sensação Lady Mariahnna, a musa pop de todos os tempos daquele ano.
Comprar a novidade. Esse é um pensamento que, segundo nossos registros, jamais passou pela cabeça de Bastos.
Desceu à Feira da Bolívia nesse dia, tentaria consertar o aparelho. De que outra forma conseguiria terminar de ouvir a nova música de Lady Mariahnna?
Entrou na Loja 32 A ½ ou como é popularmente conhecida, “Concertos do Jão”. Reproduzimos o diálogo captado pela câmera de segurança local.
- Bom dia, Jão.
- Fala Bastos, que nos traz dessa vez?
- Poxa, meu celular pifou bem no meio da música nova da Lady Mariahnna, será que tem como arrumar?
- Lady Mariahnna, essa mulher tem uma das melhores vozes que ouvi nessa semana, vou te contar! Bom, vamos ver aqui.
(...)
- Olha, até tenho como concertar, mas acho que fica mais em conta você comprar um novo.
- Sei... Tem aí outro desses, então?
- Garoto, esse celular é de 2012, como você quer que eu tenha um desses? Até onde sei esse é o último que não foi pro aterro ainda! Posso te oferecer esse aqui, que tal? Acabou de chegar, novidade direta da Índia.
- Parece meio... Exagerado se só vou usar pra ouvir música.
- Exagerado? Ainda não entendeu? Quanto mais função tiver, melhor!
- É verdade. Ok. Vou levar.
Roberto Mariano Resende, o Jão. Vendedor de eletrônicos da Feira da Bolívia.
Divorciado.
Depressivo.
Mentiu sobre a origem do aparelho.
Fato é que não consta em registro algum sobre o aparelho, nem mesmo sobre ele ter vindo da Índia.
Bastos passou o resto do dia tentando localizar o botão para ligar o aparelho.
10 de Fevereiro de 2014:
Bastos finalmente conseguiu entender parte das funções do aparelho após seis horas seguidas de tentativa e erro e agora tentava transferir a nova música de Lady Mariahnna, a musa pop de todos os tempos daquele mês para seu novo aparelho.
Depois de duas horas, descobriu que o cabo de conexão do aparelho não funcionava. Decidiu-se que procuraria Jão no dia seguinte.
Talvez se não tivesse adiado o reclame do aparelho, não teria descoberto os cinco terabytes de informação escondidos no aparelho.
Assim, ao acaso, começou o que viria a ser um dos mais enigmáticos eventos da história.
Quatro daqueles terabytes estavam lotados. Lotados de música de todas as gerações até 2013.
Passou o dia ouvindo músicas no modo aleatório. Uma de 1995, Bon Jovi. Outra de 1973, Bee Gees. Outra de 2000, Green Day. E assim por diante.
Parêntesis informativos:
Bon Jovi: Cantor famoso por suas letras que segundo muitos “falam ao coração”
Bee Gees: Grupo famoso pela voz estridente de seus cantores. Alguns dizem que é impossível não gostar das músicas por eles tocadas.
Green Day: Grupo de punk-rock famoso por suas críticas fortes à extinta e primitiva sociedade do final do século XX e começo do século XXI em suas letras.
Não se sabe ainda como, mas o aparelho em conjunto com os fones arcaicos agiu como uma torre de transmissão subneural ultra potente.
Assim, iniciou-se uma reação em cadeia, onde as ondas passavam pelo canal auditivo de cada pessoa na Terra, transformando cada uma ao mesmo tempo em um receptor e amplificador de ondas. Ou seja, todos na Terra ouviram exatamente a mesma coisa ao mesmo tempo enquanto o aparelho reproduzia sua lista aleatória.
11 de Fevereiro de 2014:
A Terra amanheceu ao som de Bach, seguido de Iron Maiden.
Fato interessante: Como as ondas atingiam diretamente os canais auditivos, toda a Terra não só ouvia exatamente a mesma coisa ao mesmo tempo como também impossibilitava que fosse ouvido qualquer outro som que não o vindo das ondas, o que na prática deixava todos habitantes do planeta surdos, forçando-os a se comunicar por linguagem de sinais ou, muito mais prático, por mensagens de celular.
Com a surdez, atrasaram-se os progressos para entender exatamente o que ocorria uma vez que o acesso à sala de emergência da Casa Branca, situada em Nova Washington, requeria identificação por voz em um espaço de 10 segundos muito bem marcados. Como ninguém conseguia ouvir o anúncio para que fosse dita a senha, a sala continuava fechada.
Almoçou ao som de Soundgarden e Sonic Youth.
Bastos, demonstrando absurda falta de percepção e absurdo amor por música, não só não ficou sabendo de nada do que ocorria com o mundo como não percebeu que a música que ouvia não vinha dos fones que usava, mas de seus próprios ouvidos. Para completar a situação, por conta de um trabalho, teria que passar vários dias sem dormir para que este fosse entregue a tempo, o que o isolou do mundo na semana que se seguiu.
A mãe de Bastos, por outro lado, percebeu e estranhou que o filho estivesse com fones de ouvido quando não conseguiam ouvir nada. Elaborou, então, duas teorias: Ou os fones haviam finalmente quebrado e os usava como acessórios do século passado ou tentava desesperadamente ouvir a nova música de Lady Mariahnna, a musa pop de todos os tempos daquele mês.
12 de Fevereiro de 2014:
Nesse dia, tocou-se Jimi Hendrix e Blind Melon ao lado de Sound Horizon e Radwimps.
Após uma série de tentativas frustradas de entrar na sala de emergência no silêncio periódico que surgia no espaço entre uma música e outra, finalmente as portas da sala se abriram.
Outro fator que contribuiu para a demora na localização da fonte de transmissão foi que todos no planeta de fato eram uma fonte de transmissão em miniatura.
O Sol se pôs com Daft Punk e X Japan.
13 de Fevereio de 2014
O Sol veio junto com Beatles, cantando Here Comes the Sun.
Devemos lembrar o leitor de que o ano era 2014, os computadores da época eram tão primitivos que demoraram duas horas para localizar a fonte da transmissão.
Nesse dia uma força tática de emergência foi treinada, porém em linguagem de sinais uma vez que não podiam arriscar interceptações em mensagens escritas ou eletrônicas. Assim, surgiu a necessidade de ensinar a linguagem de sinais ao esquadrão.
A noite veio com Portugal. The Man cantando Sleep Forever e a Terra dormiu com o doce vocal de Sugarland.
14 de Fevereiro de 2014:
O quinto dia da unidade musical mundial, por aleatoriedade pura, tocou apenas música clássica o dia todo com exceção de uma música de Pink, tocada às 13:27.
15 de Fevereiro de 2014:
A missão “Silence, I Kill You” começou com a Cavalgada das Valquírias (Walkürenritt).
Os dados da invasão estão parcialmente corrompidos, certas coisas são confidenciais até o momento.
Sabe-se que após seis dias de trabalho Bastos finalmente se preparava para salvar seus dados e enviá-los quando o esquadrão entrou.
O aparelho ainda assim continuou ativo, uma vez que até onde sabia o esquadrão, se desligado impropriamente, um aparelho tão poderoso poderia causar uma onda de tal magnitude que estouraria os tímpanos de toda a população terrestre.
Tal suposição, depois de certa deliberação, se provou ser exatamente o que parecia ser: Impossível.
Assim o aparelho foi desligado.
16 de Fevereiro de 2014 e além:
O mundo acordou em silêncio. Graças foram dadas aos céus, finalmente estavam livres.
Bastos, após explicar o ocorrido e dar depoimentos quase infinitos, foi levado a julgamento por atentado à audição do mundo, julgamento onde a promotoria tentava desesperadamente convencer o júri de que Bastos tentara deixar o mundo inteiro surdo. Condenado foi proferido pelo juiz. Bastos deveria passar o resto da vida na prisão.
Aconteceu algo diferente, afinal. Tal exposição à tamanha variedade de músicas fez com que muitos descobrissem que existiam outras bandas que não as tocadas na rádio. Tal descoberta causou o que vemos hoje, um renascimento da música no mundo.
Assim, cinco anos depois, Bastos foi libertado. Hoje seu nome inspira muitos a dizerem que foi ele o verdadeiro herói da música.
O mundo mudou.
Não mais agora temos vinte estações tocando a mesma música, mas duzentas tocando duzentas músicas diferentes. Assim se fez a revolução musical do mundo. Assim o silêncio polifônico dominou o mundo.

---------- Fim de Transmissão de Audiolivro ----------

- Certo crianças, encerramos por hoje. Alguém tem perguntas? Sim?
- O que aconteceu com Bastos depois disso tudo?
- Onde está Bastos hoje? Alguns dizem que ainda se fecha em sua casa, trabalhando cada vez mais, outros que saiu em busca de mais músicas pelo mundo. Eu acho que ele pode estar em qualquer lugar, se você parar para pensar.
- Isso aconteceu mesmo?
- Ora, não estamos no museu da música? É claro que aconteceu! E quer saber? Vocês podem ser iguais a ele, podem começar a ouvir sempre mais e mais coisas diferentes, que tal? Não parece legal?
(...)
- Bem crianças, o museu já vai fechar, vamos indo para o ônibus, certo? Eu fico por aqui, adeus! Espero sua visita!
(...)
- Como foi a visita hoje?
- Muito bem, adoro crianças.
- Quer colocar alguma coisa no rádio?
- Ah, sim... Que tal Mornings?
- Você está viciando nessa banda, vou te dizer.
- Sei disso, mas Mornings é uma música tão legal...
- Posso te fazer uma pergunta?
- Claro.
- Por que não diz quem você é pra eles?
- Porque acho que é melhor que eles pensem em Bastos como uma ideia, não como um cara que trabalha em um museu. Não sei se isso faz sentido.
- Faz.
- Quer dançar?
- Claro.
“The future was born with the sunrise,
The sunrise that builds into days and even more years.
And as it rolls burning,
Burning up like the trails (of the comets pulled tails)
We'd look around until we find, we find...
The people found the mountain,
Climbed up from that hole in the ground
Through the cracks in the sky
And threatened to fall,
Still I don't believe, I don't believe.
And we'll be just fine, and we'll be just fine.
10 de Fevereiro de 2032.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Não Pergunte Por Quem Os Sinos Dobram


Capítulo III – Aristogatos e queijo:
Todo mundo, todo mundo quer a vida que um gato tem...
Acordei naquele dia e saudei minha cidade, minha grande e maravilhosa cidade. Ah, Paris, se o céu for um milésimo do que você é... Ah minha torre, escolhi esse lugar para poder acordar todo dia e olhar para você. Como que não gostaram de você quando te construíram? Meu pai contava histórias de meus antepassados que viveram na época que a construção começou. Claro, as coisas eram mais difíceis naquela época, as pessoas não podiam se dar ao luxo de desperdiçar nem uma migalha de brioche e só podiam conseguir comida bem cedinho quando as peixeras voltavam com a leva do dia e nunca era garantida, mas eles conseguiam sobreviver, ah isso sim. Mais ainda, conseguiam viver essa maravilha que é nossa vida.
Nunca saí de Paris, minha família veio para cá de Portugal na época que Portugal ainda era um bom lugar pra se viver, vovô Pança me contou sobre como Dona Baja veio com seus donos em uma caravela até Calais e de lá seguiram viagem até o ponto onde vivemos até hoje.
Já passei por quase todas ruas e vielas e todos bares e confeitarias por quase quarenta quarteirões!
Conheço algumas pessoas que sempre me dão comida e de vez em quando até um pouco de leite, inclusive era isso que ia fazer aquele dia, só precisava ir naquele parque com um monte de plantas onde a garçonete me dava alguns pedaços de torta de tomate do dia anterior, mas eu tinha que tomar cuidado com os camburões e com aquele maldito labirinto, sempre me perdia naquela porcaria.
Reflexos de gato! Sempre esperto! Atravessar em 3, 2, 1... JÁ. Desviar do Ford, do Clio... MOTO! CORRE CORRE CORRE. Há, consegui. Ah, estou quase lá, posso sentir aqueles tomates murchinhos virando purê na minha boca junto com aquela massa salgadinha gostosa... Hmmm... Quase lá, quase...

- AH! MERDA! PUTA QUE O PARIU, GATO MALDITO, POR QUE TINHA QUE FICAR NA MINHA FRENTE? Merda, merda, merda... Eu vou... Descupa, cara, não foi por querer, eu... Eu não posso ficar, desculpa, pequeno... – Ele... me atropelou? Esse romeno doido, ele... Que é isso? Por que não consigo ver nada direito? Ai, por que não consigo ficar de pé? Isso é... Dor?
- Ah, tadinho, que fizeram com você? Não se preocupe, já vai passar, acredite, eu sei, dói bastante, né...? Hm... Eu... Já sei, vou te arranjar uma casa nova, que tal? Só preciso falar com meu ãhn... Tutor e... – Casa? Que é isso, eu sempre me virei sozinho e... Ai, droga... Tá doendo... Tá... Ué, que é isso? Tá ficando difícil respirar mas... A dor tá diminuindo? Será que ele fez a dor passar...? Será...?


Será que Lusco vai ficar bem?
***
- Morte, pode fazer um favor?
- Um favor?
- É... Será que você pode trazer aquele gatinho com a gente?
- Deixa ver se eu entendi, você está pedindo para um ser de poderes ilimitados e magníficos para pegar a alma de um gato de rua qualquer?
- Bem... É.
- Bem, não.
- Por favor!
- Não.
- Por favor!
- Não, já disse!
- Por favor! – Dizia puxando minha então calça colada na pele.
- Desgraça, se eu fizer você vai parar de encher?
- Sim, juro!
- Pft... Feito.
- Valeu mortinha, te adoro! – Me abraçou.
Interessante os pequenos caprichos dos que um dia já foram vivos, por mais que estejam longe do tempo em que respiravam ainda não perdem esses detalhes mínimos que fazem deles o que são. Será que tenho esses caprichos também...?
Que? Não, que é isso? Aqueles comprimidos não devem estar me fazendo pensar direito.
***
Um pequeno monólogo sobre a morte por Arthur de Leon.
Não tenho certeza como começar isso, só queria poder passar um pouco de minhas impressões, de minhas experiências enquanto mortal e de como as vejo agora como imortal.
Passei grande parte de minha vida indo a lugares, mas sabe onde gostava de ir? Ao metrô. Estranho? Não acho, alguns gostam de cinema, outros de teatro, eu gosto de metrôs. Gostava deles porque aqueles vagões eram os únicos lugares onde eu podia realmente olhar para a cara des pessoas, no meu trabalho era tudo tão monótono e monocromático que chegou a me dar enxaquecas. Nunca se conseguie pegar o mesmo vagão com as mesmas pessoas duas vezes, alguns são quietos, outros querem puxar conversa a todo custo, às vezes uma briga ou outra acontecia e a coisa ficava feia, às vezes duas pessoas se desentendiam e, para parar a discussão, uma delas cortava a outra e colocava fones de ouvidos. De vez em quando alguém passava vendendo balinhas. Na verdade nunca comprei nada, mas mesmo assim era interessante vê-los tentar me vender algo.
De tudo, o metrô só tem um problema, uma hora ele chega no ponto final, e lá você fica sozinho de novo.
Não importam as conversas, as brigas, nada, as pessoas vão embora. Simples assim.
No fim eu estava sozinho, mas acho que no fundo sempre estive, meus pais morreram quando eu tinha 14 anos e desde então meu avô cuidou de mim.
Ele me ensinou tudo que precisei para subir na vida, me deu uma boa educação, uma bela casa e me ajudou a construir tudo que eu sempre sonhei. Não, espera, me ajudou a construir tudo que ele sempre sonhou.
Ele morreu quando eu tinha 27 anos, a partir dali o mais próximo que tive de uma família foram B1 e B2, que não eram exatamente amorosos e íntimos meus.
Fato interessante que se fosse analisar minha vida quando ainda estava vivo eu diria que não poderia pedir por nada melhor, mas agora vejo que Lusco teve uma vida melhor que a minha. Que coisa, não? Descobri que invejo um gato de rua.
Enfim, não sei se disse tudo que queria aqui, mas paciência, qualquer coisa eu escrevo mais um desses aqui.
Bem, acho que é só.


Não Pergunte Por Quem os Sinos Dobram, Porque eles Dobram por Kiwi

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Uma Hora da Manhã


Uma Hora da Manhã
Vou contar uma história, talvez “A” história, talvez só “outra” história, não sei.
Lhes conto essa história já tarde na madrugada  de um dia chuvoso, não creio que exista clima melhor para contá-la. Como toda história, essa começa com um nome, Roberto, um homem de bem, um homem calmo e sereno. Ou pelo menos era assim... Aproveitem-na, vou estar bem aqui quando acabarem para conversarmos mais. Por hora fico aqui ouvindo a chuva batendo na janela lá fora.

***

Ele está lá. Sim, sei que está, só esperando que eu vá lá apagar a luz para me pegar. Ah o fim, que bela maneira de partir... E pensar que alguns dias atrás estava feliz e confortável em minha sala de visitas/sala de TV, só aproveitando um bom filme do começo dos anos 90.
O que... Um miado? Mas como? Bóris se jogou da janela uns dias atrás, ele... Será que ele quer me enlouquecer com isso? Talvez. Talvez esteja conseguindo.
No começo eram as luzes, entende? Elas acendiam sozinhas quando eu não estava olhando... Achei que quem as estava acendendo era eu mesmo e qye só esquecia... Sempre fui esquecido...
Então... Então o escorredor começou a mudar de lado da pia, algo idiota, mas como eu poderia ter feito aquilo se sempre o deixava de um lado? E continuava acontecendo, de novo e de novo. Comecei a me assustar, achei que o lugar estava assombrado, que eu podia lutar contra o que está naquele corredor. O que está naquele corredor? O que está naquele corredor? O que... Água benta e crucifixos, achei que estaria protegido com água enta e crucifixos. Vi em um documentário no discovery channel uma vez que coisas assim funcionavam e conseguiam ao menos enfraquecer as assombrações, achei que valia a pena tentar. Lavei tudo com água benta, chão, paredes, teto. Preguei um crucifixo. Outro. Quando fui pregar o terceiro... Nada. Não conseguia atravessar. O prego não entrava além do reboque da parede, era como se eu estivesse martelando aço no aço, algo absurdo... A furadeira devia dar conta do serviço. Deu. Com uma leve pressão no gatilho a broca girou, entrando fundo na parede. Então a parede sangrou. Em vez de poeira branca e avermelhada, um líquido espesso saiu do buraco, algo vermelho cheirando levemente a ferro. Não jorrava, escorria lentamente, lentamente manchando a tinta da parede.
Não consegui tirar aquela mancha por nada nesse mundo.
O síndico disse que eu tinha furado um cano que não devia estar lá, que devi estar na parede oposta. Insistiu em dizer como aquele cano era velho como estava enferrujado e como o trocariam em agosto. Posso acreditar que acertei um cano e posso acreditar que estava enferrujado, mas não posso acreditar nessa história.
Não jorrava, escorria.
Moro no sexto andar de um prédio com 14 andares, se eu tivesse simplesmente acertado um cano, teria manchas até no teto por causa da pressão monstruosa que estaria acumulada na água, entretanto... Não jorrava... Escorria...
O encanador viria consertar na quarta feira. As luzes acendiam sozinhas. O escorredor mudava de lugar. A parede sangrava. Eu entrava em desespero.
Desde que o trouxe para o apartamento, Bóris ficava encarando a parede que sangrava dua horas por dia, todo dia. Nunca entendi porque ele fazia aquilo, mas achei que ele tmbém não entendia por que eu passava quatro horas por dia encarando uma caixa de luzes colorida. Naquele dia Bóris viu algo(ou sentiu algo) e teve uma súbita vontade de virar pavê. Ou pelo menos foi isso que entendi. Bóris virou pavê. Eu começei a chorar.
Tanta coisa acontecia, mas só acontecia à noite, só... Só de noite. Ouço algo no corredor, só rezo para que essa noite acabe, não quero ficar aqui, durmo em um banco na praça, não importa, não quero ficar aqui. Não quero...
O encanador consertou o cano na sexta feira e eu não consegui mais dormir. Nunca dormi muito, mas depois daquele dia não consegui dormir nem dez minutos, sempre* que começo a adormecer acordo com um pulo, como se despertasse de um pesadelo do qual não pudesse me lembrar.
Comecei a ver vultos, vultos por toda parte, toda vez que desvio o olhar para alguma coisa muito rápido vejo algo... Algo se escondendo... Algo... Minha respiração... Não consigo controlar... Não consigo... Aquela luz, tenho que apagar aquela luz, tenho que apagar... Mas ele está lá, ele quer que eu apague a luz, ele... Que foi isso? Tem alguém aqui? Tem alguém... Tenho que apagar aquela luz, eu... Eu... Vou apagar aquela luz.

***

Sozinho e sujo com a própria urina, Roberto foi encontrado em seu apartamento. Hoje ele já não mora mais no sexto andar daquele prédio, hoje ele mora em uma bela salinha cúbica branca estofada em uma casa térrea, sempre veste seu belo macacão branco de gala com as mangas amarradas atrás das costas. Médicos e psiquiatras dizem que ele entrou em um estado onde sua mente recria os mesmos episódios de novo e de novo e de novo. Pobre Roberto, preso para sempre em seu pesadelo.
Alguns dizem que Roberto apresentava sinais de esquizofrenia já antes do ocorrido, afirmam que foi tudo obra de sua mente senil. Outros apelam para o sobrenatural, dizem que o apartamento tem um histórico desde seu primeiro dono, que Roberto apenas escolheu morar no lugar errado, grande erro.
Não sei dizer quem está certo e quem está errado, comprei esse apartamento já faz alguns meses e não vi nada de tão assustador assim. Mentira, já tomei vários sustos com meu guarda roupas; Ele é de madeira envernizada e bem polida a um ponto em que fica parecendo um espelho marrom embaçado e dependendo do jeito que olho pra ele parece que tem alguém mais no quarto. Que coisa, tenho mais medo do meu guarda roupas do que desse apartamento.
Bom, acho que é só isso, espero que tenham gostado da história. Voltem quando quiserem. Agora vou dormir, só vou apagar aquela luz do corredor.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Não Pergunte Por Quem Os Sinos Dobram


Capítulo II – À França, com amor:
Quando passo o passo, morro e repasso: Fatio o linho e corro pro abraço.
O que... Ah aquele filho da... Andou usando minha máquina de escrever de novo? Desgraça... E justo atrás das folhas que eu já escrevi? Ok, já chega, definitivamente preciso de um computador. Ou de um cadeado.
***
Que tédio... Quer saber de uma coisa sobre o limbo? Não tem nada pra fazer aqui! Quer dizer... Literalmente é um espaço em branco vazio com camas e essa máquina de escrever em baixo da cama da Morte. Ela quer que eu faça o quê? Casinha de vento? Vou é escrever, poxa. Ela deve estar coletando as almas penadas dela ou falando com Deus ou com o psicólogo dela então acho que tenho algum tempo.
Sobre o que devo escrever...? Hm, tá aí algo a se pensar, quer dizer... Se alguém do outro mundo fosse ler isso, que mensagem eu gostaria de passar? Não creio que minhas histórias sobre minha vida sejam importantes, afinal, eu morri! Queria escrever sobre o pós-vida, sobre como tudo é diferente e coisas do gênero, exceto que, como já disse, não tem muito pra se escrever aqui, aquele parágrafo ali em cima já disse tudo. Então... O que? Bom, a Morte tava escrevendo sobre como eu entrei nessa... Que tal se eu contasse como outra pessoa entrou? É, acho que isso vai dar certo. Beleza, então aqui vai a história de Arthur.
Seguinte, a Morte não nos deixa sair muito, sabe? Ela diz que devemos nos acostumar com o limbo, que lá é onde vamos preencher toda a burocracia e blá blá blá, mas nesse dia em especial ela decidiu me levar com ela. Era a primeira vez que eu saía desde que tinha batido as botas, e tipo, eu tava na maior onda porque né, Paris, oi.
- Você devia ter visto isso aqui no século XIX, aquilo sim era uma cidade repeitável. – Diz Morte.
Então temos esse cara que temos que recolher, certo? O nome é (ou era, sei lá) Arthur de Leon, Leon é... Vou usar o presente pra falar dele, vou considerar que se eu vejo, falo e toco nele ele ainda existe. Enfim, Leon tinha (Sei que disse que ia usar o presente mas...) 64 anos quando tudo isso aconteceu. Tem cabelos brancos, pele enrrugada e sempre usa esse suéter verde xadrez que ele diz dar sorte. Nativo de Paris, poderia se dizer que Arthur é tudo, menos um parisiense. Em 64 anos de sua existência, Arthur nunca foi ao topo do “Lixo metálico empilhado”, que é como chamava a Torre Eiffel, sequer pasou perto do “Culto ao ócio e da xaropice”, vulgo Louvre, não gosta de croissants e acredita firmemente que o Arco do Triunfo já foi um dia algo usado para sustentar uma enorme edificação romana do tamanho do Coliseu, o que parece ser uma explicação mais plausível em sua cabeça do que acreditar que alguém construiu um enorme arco no meio do nada só para atestar seu triunfo sob as forças do mal. Pois é, cada um com suas loucuras.
Bom, então estavam no topo de um dos maiores prédios da cidade Arthur e mais dois executivos da Paris Office Rooms for Real Accionists, ou P.O.R.R.A., como eles gostam de chamar, conversavam sobre a possibilidade de implantar um novo aluguel sobre os interruptores dos escritórios, chamariam de uma pequena medida para aumentar a renda durante a recessão, o que era uma mentira uma vez que os dois milhões trezentos e trinta e dois mil quatrocentos e vinte e sete euros que a companhia havia perdido foram repostos com setenta e dois milhões quinhentos e cinquenta e três mil e nove euros vindos de investimentos na China.
- Não dá, não dá, não podemos cobrar isso! É óbvio que podemos cobrar no mínimo o dobro disso! – Dizia um à esquerda de Arthur.
- Tá maluco? O negócio é começar cobrando esse valor e aos poucos ir aumentando, se começarmos cobrando tanto eles vão acabar nos processando! – Rebatia o outro, à direita dos outros dois homens.
- Maluco é você, retardado!
- Que foi? Ofendi? Fala aí!
- Eu tô cheio disso! Vou te estourar a cara!
- Cai dentro seu...
Na mente de Arthur, a briga terminava aí, desse ponto em diante os homens à sua frente não passavam de duas figuras fazendo gestos e gemendo umas para as outras. Os executivos se chamavam... Se chamava... Interessante, não sabia o nome deles, sabia que eram irmãos, e que chamava de B1 o da esquerda e de B2 o da direita. Por algum motivo agora ele imaginava ambos vestidos de ratos, “Lester 1 e Lester 2”, pensou. De repente o escritório do alto da torre coberto de vidro e móveis caros se transformou em um laboratório, e de repente ele tinha um longo cabelo espetado e preto, oh meu Deus, preto! Em seu delírio, Lester 2 ou B2 ou Francis, mesmo que ele não lembrasse desse último nome, o chamava, resgatando-o de volta à vida real.
- Que você acha, Arthur?
- Eu... Eu acho que vai depender do resultado do jogo de hoje e... Eu... Caramba, que dor de cabeça, rapaz! – Disse meio que fingindo no começo, mas depois percebendo que a dor de cabeça realmente estava ali.
- Quer uma aspirina? – Perguntava B1 enquanto puxava uma gorda cadeira estofada vermelha.
- Não... Só preciso dar uma volta... É, uma volta... Vocês continuem o trabalho, sim...?
- Sim, senhor! – Responderam num tom uníssono que faria Arthur cair na gargalhada no mesmo instante se aquele fosse um dia normal, mas aquele não era um dia normal, Arthur estava doente, fato que só ocorrera cerca de vinte anos atrás num incidente que envolvera uma galinha e um cozinheiro com malária que se sentira ofendido pela forma como Arthur entrara em seu restaurante.
Arthur saiu pela avenida cambaleando, desesperado por ar, por um lugar onde pudesse esfriar a cabeça, qualquer lugar. Esbarrou em uma ou outra pessoa no caminho, balbuciando alguma coisa como pedido de desculpa. Entrou no primeiro parque que viu, adentrando no Jardin Des Plantes, um parque gigantesco perto do centro de Paris.
Cinco minutos foram necessários para que a dor passasse, nada mais, nada menos. Arthur levantou-se, finalmente contemplando o parque. Por trinta segundos pôde observar a grande beleza do local, a última vez que estivera em um parque fora dez anos e uma mijada atrás. De repente Arthur sentiu vontade de fazer algo novo. A idéia mais perigosa que já surgiria em sua mente lhe veio à cabeça: iria sair da rotina.
Parou um entregador de jornal e perguntou em puro e perfeito francês qual era o ponto turístico mais próximo dali. O entregador, um romeno que estava na cidade em busca de uma vida melhor, lhe disse em um francês travado e gago que o Louvre era uma boa opção. Trocaram um aceno e após o entregador elogiar o francês de Arthur, “exepcional para um estrangeiro”, tornou a realizar suas atividades padrão.
***
Nota mental: Acorrentar a máquina de escrever ao sair do limbo.
Espera... O moleque estava me ajudando? Ele... Ele resolveu contar a história por mim? Interessante... Talvez sejam esses remédios que Deu... Quer dizer... Meu psicólogo me mandou tomar, mas acho que isso pode não ser má idéia... Uma bela história daqueles do além sobre aqueles na Terra... É, isso pode render alguns centavos para o cara que achar isso... Ou ele pode postar em um fórum da internet, quem sabe?
Bem... De onde paramos...? Certo.
Arthur passava deslumbrado pelas ruas de Paris, interessante como algumas pessoas sempre passam pelos mesmos lugares e quase nunca realmente olham por onde passam, como só olham para onde querem chegar...
Passou por um outdoor gigantesco que anunciava um grande jogo de futebol que ocorreria no dia seguinte e seria coberto pela emissora esportiva mais conhecida no mundo. A verdade era que o grande jogo não valia nada, mas todos queriam acreditar que valia, assim, ele adiquiria valor.
Outras coisas que não valem nada mas que todos teimam acreditar que valem são ouro, papel com figuras específicas escritas nele, papel antigo com figuras específicas escritas nele, cor de pele, mamonas e cadeados.
Na ocasião, tomei a forma de uma bela mulher, loira com peitos grandes e roupa colada na pele, decidi correr pelo parque onde Arthur estava sofrendo da última doença que teria em sua vida. Rafael tinha ido fazer carinh0o em um gato moribundo. Viria pegar ambos logo depois daquilo.
Arthur dobrou a esquina, ansioso pelo que viria a ver, ansioso pelo que poderia sentir, quem sabe... Quem sabe...
Eu sei.
A duas casas do museu uma pedra do tamanho de uma tangerina atingiu a nuca de Arthur, uma horda furiosa se aproximou dele com paus e canos, batendo e chingando, batendo e chingando, chutes, socos, todo tipo de agressão. Arthur pensou que aqueles fossem seus clientes, que estivessem revoltados com sua política de aumento de preços, que tivessem resolvido dar um fim naqueles abusos, quem sabe?
Eu sei.
Aqueles não eram clientes de Arthur. Bom, um deles era, mas sequer reconheceu o infeliz. Eram piores que clientes, eram torcedores. Arthur de Leon à primeira vista podia ser chamado de qualquer coisa, menos de parisiense. Arthur de Leon não morreu por causa de trabalhadores clamando por justiça, morreu por não parecer ser de onde veio.
Morreu na contramão atrapalhando o trânsito.
Naquele mesmo dia um gato chamado Lusco morreu. Curiosamente o enterro do gato teve mais espectadores do que o do próprio Arthur.
A França ganhou o jogo.
Um imposto absurdo foi imposto a um número gigantesco de gente.
Três pessoas morreram em brigas.
Mas a França ganhou o jogo.
E a alegria do povo francês contagiou o mundo.
E o amor do povo francês contagiou o mundo.