domingo, 16 de outubro de 2011

Música em Primeira Ordem


Música em Primeira Ordem

---------- Transmissão de Audiolivro Iniciada ----------

Muito pode ser dito quando pouco se conhece sobre algo. Os eventos a seguir ocorreram na semana entre 09 e 15 de fevereiro de 2014, quando se comemorava o segundo aniversário do nascimento dos Estados Gerais da América, nação essa que hoje celebra vinte anos e reúne o que costumavam serem 34 nações independentes e fracas.
Naquela época ainda estavam em curso as negociações para que a Bolívia entrasse na união, fato que hoje sabemos que nunca acontecerá... Pelo menos enquanto Chávez continuar ganhando as eleições.
09 de Fevereiro de 2014:
Aqui encontramos Bastos. Sua história é hoje conhecida, ainda assim pouco ela tem a dizer sobre o ocorrido. Filho de classe média baixa tinha uma vida razoavelmente boa. Cabelo castanho claro e olhos verdes.
Diziam que era bonito.
Não sabia falar com garotas.
Gostava de música.
Enquanto todos corriam atrás dos melhores e últimos aparelhos e fones para ouvir música, Bastos se contentava com um simples reprodutor portátil de 2012 e um par de fones arcaicos que seu avô dizia ter pertencido a um aparelho chamado Walkman.
Abrimos aqui um parêntesis a você, leitor de 2032.
Walkman: Aparelho primitivo de reprodução de Fitas Cassetes.
Abrimos aqui outro parêntesis a você, leitor de 2032.
Fita Cassete: Um dos primeiros meios de gravação de som criados, sucessor dos Discos de Vinil, ainda hoje aclamados por certos meios sociais. Por mais absurdo que pareça, conseguia gravar apenas uma média de 60 minutos se utilizado em seu total potencial.
Como era de se esperar, aparelhos tão velhos assim não foram feitos para se tornarem tão velhos assim. Dessa forma, a maravilha de todas as maravilhas, o novo celular do momento de 2012 terminou seus dias explodindo enquanto tocava a nova música da sensação Lady Mariahnna, a musa pop de todos os tempos daquele ano.
Comprar a novidade. Esse é um pensamento que, segundo nossos registros, jamais passou pela cabeça de Bastos.
Desceu à Feira da Bolívia nesse dia, tentaria consertar o aparelho. De que outra forma conseguiria terminar de ouvir a nova música de Lady Mariahnna?
Entrou na Loja 32 A ½ ou como é popularmente conhecida, “Concertos do Jão”. Reproduzimos o diálogo captado pela câmera de segurança local.
- Bom dia, Jão.
- Fala Bastos, que nos traz dessa vez?
- Poxa, meu celular pifou bem no meio da música nova da Lady Mariahnna, será que tem como arrumar?
- Lady Mariahnna, essa mulher tem uma das melhores vozes que ouvi nessa semana, vou te contar! Bom, vamos ver aqui.
(...)
- Olha, até tenho como concertar, mas acho que fica mais em conta você comprar um novo.
- Sei... Tem aí outro desses, então?
- Garoto, esse celular é de 2012, como você quer que eu tenha um desses? Até onde sei esse é o último que não foi pro aterro ainda! Posso te oferecer esse aqui, que tal? Acabou de chegar, novidade direta da Índia.
- Parece meio... Exagerado se só vou usar pra ouvir música.
- Exagerado? Ainda não entendeu? Quanto mais função tiver, melhor!
- É verdade. Ok. Vou levar.
Roberto Mariano Resende, o Jão. Vendedor de eletrônicos da Feira da Bolívia.
Divorciado.
Depressivo.
Mentiu sobre a origem do aparelho.
Fato é que não consta em registro algum sobre o aparelho, nem mesmo sobre ele ter vindo da Índia.
Bastos passou o resto do dia tentando localizar o botão para ligar o aparelho.
10 de Fevereiro de 2014:
Bastos finalmente conseguiu entender parte das funções do aparelho após seis horas seguidas de tentativa e erro e agora tentava transferir a nova música de Lady Mariahnna, a musa pop de todos os tempos daquele mês para seu novo aparelho.
Depois de duas horas, descobriu que o cabo de conexão do aparelho não funcionava. Decidiu-se que procuraria Jão no dia seguinte.
Talvez se não tivesse adiado o reclame do aparelho, não teria descoberto os cinco terabytes de informação escondidos no aparelho.
Assim, ao acaso, começou o que viria a ser um dos mais enigmáticos eventos da história.
Quatro daqueles terabytes estavam lotados. Lotados de música de todas as gerações até 2013.
Passou o dia ouvindo músicas no modo aleatório. Uma de 1995, Bon Jovi. Outra de 1973, Bee Gees. Outra de 2000, Green Day. E assim por diante.
Parêntesis informativos:
Bon Jovi: Cantor famoso por suas letras que segundo muitos “falam ao coração”
Bee Gees: Grupo famoso pela voz estridente de seus cantores. Alguns dizem que é impossível não gostar das músicas por eles tocadas.
Green Day: Grupo de punk-rock famoso por suas críticas fortes à extinta e primitiva sociedade do final do século XX e começo do século XXI em suas letras.
Não se sabe ainda como, mas o aparelho em conjunto com os fones arcaicos agiu como uma torre de transmissão subneural ultra potente.
Assim, iniciou-se uma reação em cadeia, onde as ondas passavam pelo canal auditivo de cada pessoa na Terra, transformando cada uma ao mesmo tempo em um receptor e amplificador de ondas. Ou seja, todos na Terra ouviram exatamente a mesma coisa ao mesmo tempo enquanto o aparelho reproduzia sua lista aleatória.
11 de Fevereiro de 2014:
A Terra amanheceu ao som de Bach, seguido de Iron Maiden.
Fato interessante: Como as ondas atingiam diretamente os canais auditivos, toda a Terra não só ouvia exatamente a mesma coisa ao mesmo tempo como também impossibilitava que fosse ouvido qualquer outro som que não o vindo das ondas, o que na prática deixava todos habitantes do planeta surdos, forçando-os a se comunicar por linguagem de sinais ou, muito mais prático, por mensagens de celular.
Com a surdez, atrasaram-se os progressos para entender exatamente o que ocorria uma vez que o acesso à sala de emergência da Casa Branca, situada em Nova Washington, requeria identificação por voz em um espaço de 10 segundos muito bem marcados. Como ninguém conseguia ouvir o anúncio para que fosse dita a senha, a sala continuava fechada.
Almoçou ao som de Soundgarden e Sonic Youth.
Bastos, demonstrando absurda falta de percepção e absurdo amor por música, não só não ficou sabendo de nada do que ocorria com o mundo como não percebeu que a música que ouvia não vinha dos fones que usava, mas de seus próprios ouvidos. Para completar a situação, por conta de um trabalho, teria que passar vários dias sem dormir para que este fosse entregue a tempo, o que o isolou do mundo na semana que se seguiu.
A mãe de Bastos, por outro lado, percebeu e estranhou que o filho estivesse com fones de ouvido quando não conseguiam ouvir nada. Elaborou, então, duas teorias: Ou os fones haviam finalmente quebrado e os usava como acessórios do século passado ou tentava desesperadamente ouvir a nova música de Lady Mariahnna, a musa pop de todos os tempos daquele mês.
12 de Fevereiro de 2014:
Nesse dia, tocou-se Jimi Hendrix e Blind Melon ao lado de Sound Horizon e Radwimps.
Após uma série de tentativas frustradas de entrar na sala de emergência no silêncio periódico que surgia no espaço entre uma música e outra, finalmente as portas da sala se abriram.
Outro fator que contribuiu para a demora na localização da fonte de transmissão foi que todos no planeta de fato eram uma fonte de transmissão em miniatura.
O Sol se pôs com Daft Punk e X Japan.
13 de Fevereio de 2014
O Sol veio junto com Beatles, cantando Here Comes the Sun.
Devemos lembrar o leitor de que o ano era 2014, os computadores da época eram tão primitivos que demoraram duas horas para localizar a fonte da transmissão.
Nesse dia uma força tática de emergência foi treinada, porém em linguagem de sinais uma vez que não podiam arriscar interceptações em mensagens escritas ou eletrônicas. Assim, surgiu a necessidade de ensinar a linguagem de sinais ao esquadrão.
A noite veio com Portugal. The Man cantando Sleep Forever e a Terra dormiu com o doce vocal de Sugarland.
14 de Fevereiro de 2014:
O quinto dia da unidade musical mundial, por aleatoriedade pura, tocou apenas música clássica o dia todo com exceção de uma música de Pink, tocada às 13:27.
15 de Fevereiro de 2014:
A missão “Silence, I Kill You” começou com a Cavalgada das Valquírias (Walkürenritt).
Os dados da invasão estão parcialmente corrompidos, certas coisas são confidenciais até o momento.
Sabe-se que após seis dias de trabalho Bastos finalmente se preparava para salvar seus dados e enviá-los quando o esquadrão entrou.
O aparelho ainda assim continuou ativo, uma vez que até onde sabia o esquadrão, se desligado impropriamente, um aparelho tão poderoso poderia causar uma onda de tal magnitude que estouraria os tímpanos de toda a população terrestre.
Tal suposição, depois de certa deliberação, se provou ser exatamente o que parecia ser: Impossível.
Assim o aparelho foi desligado.
16 de Fevereiro de 2014 e além:
O mundo acordou em silêncio. Graças foram dadas aos céus, finalmente estavam livres.
Bastos, após explicar o ocorrido e dar depoimentos quase infinitos, foi levado a julgamento por atentado à audição do mundo, julgamento onde a promotoria tentava desesperadamente convencer o júri de que Bastos tentara deixar o mundo inteiro surdo. Condenado foi proferido pelo juiz. Bastos deveria passar o resto da vida na prisão.
Aconteceu algo diferente, afinal. Tal exposição à tamanha variedade de músicas fez com que muitos descobrissem que existiam outras bandas que não as tocadas na rádio. Tal descoberta causou o que vemos hoje, um renascimento da música no mundo.
Assim, cinco anos depois, Bastos foi libertado. Hoje seu nome inspira muitos a dizerem que foi ele o verdadeiro herói da música.
O mundo mudou.
Não mais agora temos vinte estações tocando a mesma música, mas duzentas tocando duzentas músicas diferentes. Assim se fez a revolução musical do mundo. Assim o silêncio polifônico dominou o mundo.

---------- Fim de Transmissão de Audiolivro ----------

- Certo crianças, encerramos por hoje. Alguém tem perguntas? Sim?
- O que aconteceu com Bastos depois disso tudo?
- Onde está Bastos hoje? Alguns dizem que ainda se fecha em sua casa, trabalhando cada vez mais, outros que saiu em busca de mais músicas pelo mundo. Eu acho que ele pode estar em qualquer lugar, se você parar para pensar.
- Isso aconteceu mesmo?
- Ora, não estamos no museu da música? É claro que aconteceu! E quer saber? Vocês podem ser iguais a ele, podem começar a ouvir sempre mais e mais coisas diferentes, que tal? Não parece legal?
(...)
- Bem crianças, o museu já vai fechar, vamos indo para o ônibus, certo? Eu fico por aqui, adeus! Espero sua visita!
(...)
- Como foi a visita hoje?
- Muito bem, adoro crianças.
- Quer colocar alguma coisa no rádio?
- Ah, sim... Que tal Mornings?
- Você está viciando nessa banda, vou te dizer.
- Sei disso, mas Mornings é uma música tão legal...
- Posso te fazer uma pergunta?
- Claro.
- Por que não diz quem você é pra eles?
- Porque acho que é melhor que eles pensem em Bastos como uma ideia, não como um cara que trabalha em um museu. Não sei se isso faz sentido.
- Faz.
- Quer dançar?
- Claro.
“The future was born with the sunrise,
The sunrise that builds into days and even more years.
And as it rolls burning,
Burning up like the trails (of the comets pulled tails)
We'd look around until we find, we find...
The people found the mountain,
Climbed up from that hole in the ground
Through the cracks in the sky
And threatened to fall,
Still I don't believe, I don't believe.
And we'll be just fine, and we'll be just fine.
10 de Fevereiro de 2032.

Um comentário:

  1. Hahahahahaha!
    Excelente!
    Cara, que conto delicioso!
    Seus contos são maravilhosamente absurdos e eu sempre me divirto lendo as suas loucuras!
    Esse aparelinho de 5 terabytes do Bastos é o meu mais novo sonho de consumo!

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