Capítulo I – Jardim Vista Alegre às 21:29
Rafael foi o primeiro deles. Já procurava por meus sucessores há cerca de quatro meses, mas nenhum correspondia às expectativas ou não aceitava o trabalho. Não os culpo, nem eu queria esse inferno... Coletar almas para serem felizes lá em cima ou sofrerem lá em baixo, isso sim é um inferno. Já pensei em me jogar na frente da barca, sabe? Ah bem... Acho que estou ficando depressiva de novo, quem sabe aquelas pílulas não ajudam...?
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Bem, acho melhor contar a história antes que elas comecem a fazer efeito.
A hora era 21:29, Rafael corria para o ônibus que dizia levar ao Jardim Vista Alegre, ônibus esse que mentia para seus passageiros uma vez que seu ponto final era um lugar que não tinha vista para coisa nenhuma e que não tinha nada de alegre, um lugar chamado de Brasilândia. Rafael não ia para a Brasilândia e agradecia ao criador por isso, desceria em um lugar chamado Casa Verde, lugar esse que também mentia para seus usuários, visto que não era uma casa e não era pintado de verde a pesar de um dia ter sido dessa cor.
O veículo desembestou pela avenida com o garoto que havia conseguido agarrar a suas portas pouco antes de fecharem, gritando gemidos metálicos a cada vez que seus freios eram pisados. O garoto, de reles 17 anos e cabelos pretos reluzindo com a luz que entrava pelas janelas dos dois lados da caixa de metal conseguiu o último lugar antes da porta traseira, lugar esse que também reduzia os assentos livres a dois marcados com amarelo vivo escurecido pelo uso prolongado e exposição, lugares esses que todos sabiam que eram reservados a idosos, gestantes, deficientes, obesos e guaxinins, mas livres na ausência destes. Rafael não gostava de sentar naqueles lugares, mesmo que não houvesse ninguém com aquelas características a vista, por três motivos: Primeiro porque tinha que estar atento em todas paradas caso algum dos privilegiados entrasse, segundo porque tais lugares ficavam longe das portas traseiras, dificultando sua saída e terceiro porque morria de medo de oferecer o assento a alguém com menos de 60 anos ou com IMC menor do que o indicado ou que só parecesse ligeiramente retardado ou que não fosse um guaxinim.
Antes que pudesse perceber, Rafael abria agora um livro de capa preta exibindo uma cegonha e um revólver e algumas palavras coloridas impressas no papel. Em cima exibiam um nome, “Kurt Vonnegut”, um pouco a baixo, uma citação de um jornal famoso nos Estados Unidos da América que afirmava com toda certeza a diversão encontrada naquele livro e, por fim, em todo o resto se viam as palavras “Café-da-Manhã dos Campeões” escritas com letras colossais e avolumadas. O garoto já havia ultrapassado mais da metade daquele livro fascinante e agora uma única pergunta lhe atormentava a mente: “Por que diabos café da manhã dos campeões?”, pergunta essa que só seria respondida nas últimas cinqüenta páginas do livro, páginas essas que ele nunca leria em vida.
O ônibus parou com o costumeiro guincho de agonia, e, quando as portas se abriram, um ser estranho e mal vestido surgiu entrando pela porta traseira. Rafael tirou um dos fones de ouvido onde Andrew Stockdale gritava que toda vez que ele olhava para um interlocutor não presente achava outro sonho por entre a glória e aguardou esperando que o cobrador pedisse àquele intruso para sair do ônibus, fato não ocorrido, o que atiçou sua curiosidade, movendo sua atenção do livro para aquela pessoa mal vestida e suja que carregava uma sacola gigantesca.
- Cobrador, aqui um presente pra você! – Gritou enquanto entregava algo que Rafael não pôde ver para a pessoa ali encarregada de recolher uma tarifa mínima dos passageiros para serem levados de cima a baixo pelo motorista. Enquanto o homem remexia em sua sacola Rafael se pegou imaginando quanto um motorista transportava por ida e por volta. Constatou que a cada ciclo de ida e volta do ônibus completamente lotado 198 reais eram absorvidos pelo governo, com três reais cedidos por cada um dos passageiros. Mesmo sem querer, o garoto constatou que sua vida estava nas mãos de alguém que recebia três reais por cabeça como condição para protegê-la, sendo que seu salário seria bem inferior a esse número. Antes que pudesse perceber, Rafael agora pensava se algum daqueles motoristas ou cobradores receberia algum aumento com aqueles quarenta centavos adicionais na tarifa básica que eram pedidos pelo governo.
Não pôde terminar o raciocínio, uma vez que aquela figura localizada a algumas fileiras dele agora começava a se dirigir aos passageiros, desejando-lhes um feliz natal e um bom ano, mesmo que tais datas já houvessem passado há uma semana, e oferecendo-lhes maravilhosas balas de goma sabor eucalipto.
- Olha, tão vendo aquela padaria ali? – Perguntou apontando para um estabelecimento que exibia as palavras “Padaria Zu Pão” – Bom, ali vende essas balas também, inclusive o dono é meu amigo, o Seu Aurélio, mas lá eles vendem um desses pacotinhos por um real! Eu to vendendo pra vocês três por um real! Vamos lá, quem vai querer?
Rafael ponderou, sondando-lhe de cabo a rabo. Não queria aquelas balas, não tinha nenhuma obrigação para com ele, nada, mas mesmo assim as comprou. Não soube por que, mas as comprou. Quando lhe estendeu a mão com uma moeda de um real em seus dedos notou também que ali havia balas sabor cereja. Pegou dois pacotinhos rosa e um verde, acenando levemente com a cabeça após pegá-los. Subitamente após fazer isso outras de suas tentativas de boas ações lhe vieram à mente: A senhora na feira que pedira ajuda para levar o carrinho pesado para dentro da casa que ficava depois de cerca de vinte degraus íngremes, sua única genuína boa ação até onde ele sabia, o homem no metrô que pedia dinheiro para pagar a passagem, dinheiro cedido pelo garoto na forma de um passe de metrô e a gentileza de deixar um homem de bicicleta passar pelo único pedaço bom de calçada das redondezas, forçando-lhe a passar por um caminho barroso e cheio de água empoçada. Claro que duas outras imagens ligadas a estas procederam as duas últimas, a do homem no metrô ressurgindo em suas costas pedindo dinheiro para a passagem e depois ficando encabulado e sumindo e a do cara de bicicleta tentando lhe roubar, roubo esse mal sucedido devido a um grande diálogo entre Rafael e o assaltante, sendo que o primeiro conseguiu convencer o segundo de que não tinha nada exceto o celular velho e obsoleto em seu bolso da coxa esquerda, o que era na realidade uma mentira, como provava sua carteira com vinte reais no bolso da panturrilha direita. Novamente sua mente foi maior que sua vontade e se perguntava se acabara de ajudar uma senhora a carregar suas compras ou um trambiqueiro e/ou assaltante.
- Feliz natal pra você pequeno, a gente tem que lembrar que Jesus já foi criança um dia, né? – Disse se dirigindo a um menino no colo de alguém que provavelmente seria sua mãe.
O fato tranqüilizou Rafael em parte, não pela religiosidade do homem, mas pelo pacote verde deixado na coxa da criança que não havia lhe dado um centavo sequer.
Assim começaram os últimos instantes da vida de Rafael Domingos, um vendedor ambulante em um ônibus de transporte coletivo, uma breve retrospectiva de como já o haviam feito de bobo por duas vezes e a aquisição de três pacotes de balas de goma. Alguns detalhes dessa cena só foram revelados após a morte dele por minha pessoa, detalhes esses como o de que aquele vendedor na verdade era eu disfarçada. Eis agora como fui parar naquele ônibus em particular: Naquele dia em especial surgiu algo que gosto de chamar de Janela da Vida, ou seja, um curto espaço de tempo que ninguém morre, o que me dá de alguns minutos a algumas horas de folga. Na ocasião, a janela foi de exatamente uma hora e vinte e três segundos, tempo suficiente para beber um café. Disfarcei-me do modo como já foi retratado, agora... Por que balas de eucalipto e cereja? Bem, pelo fato de ninguém gostar dessas balas. Quer dizer... Ninguém em sã consciência as preferiria se lhes fosse dada outra opção, e como posso saber o que pensam as pessoas, era interessante que eu soubesse a razão da compra ou recusa daqueles artigos tão desagradáveis ao paladar, avaliando possíveis candidatos ao emprego. Mas, você pergunta, como avaliar alguém pelo o que pensa ao comprar ou deixar de comprar uma bala? Simples, ao fazer a oferta, seu cérebro trabalha mais rápido do que você pensa, formando pensamentos antes mesmo que você pense em pensá-los, assim posso avaliar a essência da pessoa, consigo mais com uma bala em um milionésimo de segundo do que vinte “especialistas” com formulários e câmeras em um milhão de anos. De qualquer forma, parei na padaria citada, não porque gostasse especificamente do café dali, mas porque minha próxima cabeça passaria por ali em questão de minutos. Bom, depois de meu café corri para subir no ônibus e o resto vocês já sabem, toda e cena e coisa e tal, não vou escrever tudo de novo. Algo que já devem saber a esse ponto é que todo aquele monólogo anterior do garoto me chamou a atenção, não pela sua pureza, mas pela sua simples inocência estúpida, algo que se espera de crianças, mas não de homens de 17 anos. Ah, é por isso que continuo chamando ele de “garoto”. Enfim, como já dizia o teatrólogo, cortando os poréms e os entretantos e indo para os finalmentes, chegamos na hora da morte de Rafael.
A noite daquele dia específico estava especialmente escura para Rafael, como se os postes de iluminação pública estivessem mais fracos que o de costume. Sua parada era a próxima, por isso apertou o botão alaranjado que saía de um dos canos amarelos que iam do chão ao teto, produzindo um alto som agudo e acendendo um sinal em que se lia “Parada Solicitada”. Pela última vez, Rafael ouviu o guincho dos freios e viu as portas traseiras se abrirem, uma antes da outra. Então o garoto saltou para seu encontro com um motoqueiro que, por razões até por mim não esclarecidas, passava entre o meio fio e o ônibus semi-estacionado. Por pura ironia do destino aquele motoqueiro era também professor de Geografia do garoto, não que se não fosse algo ali ocorreria de forma diferente. A moto lhe atingiu de lado, quebrando-lhe o braço direito e várias costelas, costelas essas que perfuraram seus pulmões e coração. É fato que após a perfuração do coração o indivíduo tem ainda sete segundos de vida antes de vir para meus braços, em seus sete segundos Rafael pensou em como seu braço e peito doíam, como uma ambulância devia estar a caminho, como tinha que estar vivo para fazer seu vestibular e como nunca iria experimentar aquelas balas de cereja que comprara. Este último pensamento continua sendo um mistério. Assim, estatelado metade na calçada e metade no asfalto da rua, sangrando e pensando em balas de cereja, Rafael Domingos morreu.
Pois é... Rafael falando aqui. Bom, acabaram de contar para vocês como minha estadia no planeta Terra terminou. Devo dizer que esse não foi um dos pontos altos de minha vida ou morte, a verdade é que doeu pra caralho. Depois de soltar meu último suspiro, me vi em um grande espaço em branco, mais ou menos como essa folha que estou escrevendo agora, sabe? Nesse espaço conheci a velha Dona Morte. Não, não aquela dos quadrinhos do Maurício de Souza, mas a de verdade mesmo. Ela me contou a história dela, mais ou menos como contou pra vocês há pouco. Ela me disse que provavelmente eu iria para o céu, que eu era estúpido demais para o inferno, que se eu quisesse, poderia ir para lá, mas... Não sei, algo sobre essa proposta me excita, sabe? Conhecer todo canto do mundo, falar com todo tipo de gente, fazer a transição deles e coisa do gênero... Sim... Bom, também tem o fato de que me senti meio mal por ela, poxa vida, acho que todo mundo merece descansar algum dia e acho que no caso da Dona Morte esse dia já passou faz tempo. Assim entrei para o time da Morte, literalmente, e se querem saber, estou bem feliz onde estou.